Política de acesso ao acervo
Regras para acesso ao acervo físico da Casa Zuzu Angel/Museu da Moda
Monday, July 6, 2020
Num tempo em que celebridades são desovadas por segundo, e não mais a cada 15 minutos, como previu Andy Warhol, o radar de quem é de fato famoso fica meio embrutecido pelo excesso de oferta de celebs no mercado. É quando morre uma celebridade de fato que a opinião pública se dá conta da força perene da fama quando é legítima. Assim acontece agora com Martha Rocha, cuja morte foi anunciada ontem, e a mídia não para de falar a respeito, nem há de parar tão cedo.
Martha foi uma famosa tão famosa, que tudo considerado extraordinariamente bonito no Brasil foi rebatizado com seu nome, a partir do título da Miss Brasil 1954. A água marinha escura, de melhor qualidade, aquela do colar que Assis Chateaubriand presenteou à Rainha da Inglaterra, era a “água marinha Martha Rocha”. A torta mais fotogênica das casas de Café Colonial de Gramado chama-se “torta Martha Rocha”. O mármore bege Travertino virou “mármore Martha Rocha”, até porque era tão baiano quanto a Miss Brasil das “duas polegadas a mais, e logo nos quadris, tem dó, seu juiz, tem dó” – conforme a marchinha de 1956, que lamentava a perda do título de mais linda do universo pela baiana loura, de olhos translumbrantemente azuis. O Chevrolet 1957 era a “pick-up Martha Rocha”, com o mesmo arredondado dos quadris em sua carroceria. A faixa de Miss Brasil 1954, desfilada por Martha, se tornou um troféu que ombreava em carisma e importância com a Taça Jules Rimet, levantada por nosso Bellini no gramado da Suécia, na Copa de 1958, ao som de “A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa”.
Martha Rocha era um verdadeiro Midas para a mídia. Foram quatro décadas de capas de revistas. Na O Cruzeiro, só dava ela. A Manchete, quando queria aumentar a tiragem, punha Martha na capa. Uma dessas capas, aliás, lhe custou um grande amor, o empresário Chico Catão, casado, com quem Martha vivia romance proibido, muito discretamente, como era de seu perfil. “Ninguéns” sabiam. E um dos “ninguéns”, naturalmente, era esta colunista, que numa reunião na Av. Delfim Moreira percebeu o namorico de Martha e Chico, numa saleta contígua ao salão da festa. Até que, numa noite de estreia no Theatro Municipal, um jornalista afoito resolveu emplacar mais uma capa da Manchete com Martha, e a juntou com Carlos Nuzman para uma foto, e tascou a manchete: “O novo amor de Martha Rocha”. Chico não perdoou. Martha nunca mais conseguiu falar com ele, nem mesmo ante os apelos da melhor amiga da miss, Bebeth Freitas, emissária das explicações que Catão não quis escutar.
Foi só após esse rompimento que começou o namoro dela com Nuzman, envaidecida pela repercussão da revista e a diferença de idade – ele quase 10 anos mais jovem.
Martha casou-se duas vezes. A primeira, com o banqueiro português Álvaro Piano, dono de casas de câmbio em Buenos Aires e Lisboa, um verdadeiro cavalheiro. O casamento na Candelária foi um acontecimento nacional. Tudo gerou comentários, até o fato de ela ter usado um relógio com o vestido de noiva. E no pulso errado, o direito. O que deve ter sido mais pela inversão da foto na diagramação da revista do que por erro de Martha. Mas isso rendeu.
Viúva de Álvaro, Martha se casou com outro milionário, Ronaldo Xavier de Lima, proprietário de uma grande seguradora, que foi um ótimo pai para os dois filhos de Martha com Álvaro, e a filha que tiveram. Eles brilharam nas festas da sociedade carioca, ao lado de outros casais de homens bem sucedidos com misses Brasil, como Alberto Pittigliani com Terezinha Morango, e Jackson Flores com Adalgisa Colombo.
Apaixonada, Martha não admitia infidelidades de Ronaldo, e seu temperamento forte falou mais alto quando surpreendeu o marido em pleno ato de adultério com a empregada doméstica, no quarto de serviço. Ela foi lá dentro, pegou um revólver e deixou a marca de sua personalidade na nádega direita do marido. Não houve registro policial, mas em sociedade tudo se soube.
O sorriso iluminado, com dentes perfeitos, levou a imprensa a afirmar nos obituários que Martha Rocha era uma mulher feliz. Não era. Foi uma sofredora. Vítima de décadas de adulação à sua beleza, ela se tornou impositiva e inflexível. Não abria mão de suas posições. Isso lhe valeu muitos rompimentos e desgostos. Entre seus maiores e mais fiéis amigos, estavam o cabeleireiro Jambert e seu companheiro, Martin Trinchant, espanhol milionário, com título de nobreza, apaixonado por ópera. Eles tomaram a si os cuidados e as despesas de Martha, quando ela se viu desprotegida e sem recursos, após uma puxada de tapete que levou de seu antigo cunhado, Jorge Piano.
Martha confiou à casa de câmbio de Piano todo o dinheiro que guardava para seu sustento, proveniente da venda da cobertura na Av. Atlântica, para ser transformado em dólares e depositado no banco de Piano em Nova York. Um dos filhos de Martha era casado com uma filha de Jorge, e tiveram filhos. Na véspera de Jorge Piano fechar a loja no Rio, e embarcar para Nova York fugindo dos correntistas, eles jantaram todos numa confraternização familiar, Martha, Jorge, filhos e netos. Jorge não deu um pio sobre a viagem que faria, até marcaram um novo jantar. No dia seguinte, Martha se viu pobre. Isso não é segredo, Martha Rocha, com a franqueza que era a sua marca, relatou o dissabor a todos os amigos.
A última vez em que estivemos juntas foi quando ela veio em minha casa e trouxe sua faixa de Miss Brasil 1954, as últimas peças de roupa que considerava apresentáveis, seus troféus e um belíssimo portrait pintado no ano do concurso de miss, com um vestido verde enfeitado com galhos de café, produzido para divulgar nossa indústria cafeeira. Eram suas doações ao Museu da Moda do Instituto Zuzu Angel. Sabendo de sua condição difícil, fiz de tudo para remunerá-la, Martha não aceitou. Era uma mulher de caráter.
Almoçamos, ela, nossa amiga comum Chica Dutra e eu, e passamos a tarde, as três, em conversas, risos, lembrando coisas boas e ruins, como amigas de fato. Martha já estava vivendo em Niterói. Ela contava e contou com o apoio de seus dois filhos homens, até o fim. Não foi abandonada, mas não pôde manter o padrão da diva que sempre foi. Talvez por isso, não convidava nem recebia em sua casa modesta.
Os últimos tempos, já debilitada, precisando de cuidados contínuos, passou numa casa para idosos em Icaraí. Ela fumava e, como consequência, tinha enfisema pulmonar.
Foi sincera sempre, foi imperiosa sempre, foi verdadeira sempre, foi linda sempre.
Fonte: https://www.brasil247.com/…/a-forca-da-beleza-do-carater-e-…
6 de julho de 2020, 23:50 h Atualizado em 7 de julho de 2020, 07:14
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